O livro que quase me enlouqueceu - Parte II
O que fazer quando a escrita de um livro quase destrói a tua sanidade?
Se você não leu a primeira parte, clique aqui.
Eu ainda tenho alguma dificuldade para explicar o que aconteceu.
Quando terminei de escrever Colapso, eu vinha num excelente ritmo de trabalho, de modo que comecei um novo livro já na manhã seguinte. Era uma história de horror religioso, com cenas terríveis, baseado em um pesadelo que tive e que muito me aterrorizou. Não vou dar detalhes do enredo porque é bem provável que eu ainda volte a ele algum dia. Escrevi um capítulo atrás do outro durante uma semana inteira, alcançando pouco mais de 14.000 palavras, mas logo comecei a perder o interesse. Era uma história com viés pós-apocalíptico, e embora dessa vez tivesse um teor religioso, meu sabotador interior começou a me alertar para coisas como “Você vai virar o escritor do pós-apocalipse? É o único tema que tem pra explorar? Você já escreveu Colapso, não precisa mais escrever sobre isso!”
Naturalmente, eu não tinha um bom contra-argumento, e meu entusiasmo começou a arrefecer.
“Tudo bem, vou escrever uma das minhas outras ideias, depois volto a esse”, decidi, partindo para o que eu chamo de “próximo da fila”. Dessa vez, era um projeto bem mais complexo e ousado, com uma estrutura incomum e dentro de um gênero com o qual eu não estava muito à vontade, a ficção científica. Eu tinha algumas ideias a meu ver inovadoras para o livro, todas decorrentes de uma visão que eu tivera dias antes, na qual uma garotinha negra com space buns nos cabelos estava sentada num muro em ruínas, e olhava sonhadoramente para um céu superlotado de estrelas. Eu sabia tudo sobre ela, sabia seu nome, onde morava, quem era o seu pai, o que ela queria ganhar no seu aniversário de 12 anos.
Imaginava, portanto, que seria um trabalho fácil. Quando você enxerga o todo e suas partes com tamanha clareza, o trabalho tende a se assemelhar a uma mera digitação. Tremendo engano. Embora o desenvolvimento do livro estivesse indo de vento em popa desde o momento em que escrevi a primeira palavra, aos poucos comecei a perceber que, nos momentos em que eu não estava escrevendo, a minha mente, e até mesmo a própria realidade, de alguma forma, desintegrava.
A partir daqui, inevitavelmente, vou ter alguma dificuldade para me fazer entender. Em suma, o livro começou a parecer mais real que a realidade. Os personagens, por exemplo, pareciam mais reais do que as pessoas à minha volta.
A princípio foi uma constatação divertida. Pensei que isso me ajudaria a dar mais vida à história, principalmente considerando que ela era, sim, extremamente imaginativa e ousada, mas os dias foram passando e as coisas foram se complicando ainda mais. No livro, um dos meus objetivos era destruir a ideia do que é real, envolver não só os personagens, mas também os leitores numa espiral psicodélica e mandalística de viagem consciencial. Nele, expunha algumas das minhas visões e crenças espirituais, jogava uma partida de xadrez com Hermes Trismegistus, trazia à tona meus diálogos com Jung, Nietzsche, Buda e Cristo; tentava apresentar uma metafísica não exatamente filosófica, mas sobretudo literária; tudo isso numa estrutura que daria um nó na consciência do leitor.
É, eu sei que era um projeto ambicioso. Ainda assim, estava fluindo bem; e eu já estava na casa das 30.000 palavras quando comecei a despersonalizar. Se você já passou por algo parecido, vai entender; se nunca passou, não vai. Não tem como explicar simplesmente. É como uma viagem psicodélica: você vai lembrar para o resto da vida, mas jamais conseguirá explicá-la. Apenas uma pessoa que já passou pelo mesmo compreenderá integralmente.
Imagine que você não é você. Agora imagine que existe um Grande Você (vou grafar com maiúsculo), imaterial e “espalhado pelo ar numa espécie de onisciência passiva”, acima desse você que não é você. Esse Grande Você está ligado ao pequeno você, mas está tão distante que é que como se o pequeno você pertencesse a um outro plano ou dimensão. Agora imagine que você está passando por isso e tem consciência disso: o véu da realidade foi erguido, você está numa porra de videogame ultra-realista: o Grande Você joga o pequeno você, o pequeno você sabe que é jogado.
Loucura, não? É, eu sei. Para piorar, minha imaginação explodiu numa hiperatividade tão absurda que eu me pegava paralisado, catatônico, no meio de uma lavagem de louças, caminhando na rua, almoçando, conversando com alguém. Não dava pra continuar. Quando eu olhava para o meu trabalho em andamento e me dava conta do tempo que ainda trabalharia nele, a conclusão era inevitável: se eu continuar desse jeito, vou chegar ao fim numa camisa-de-força.
Então desisti. Muito tristemente, é verdade, mas desisti. Foi uma desistência temporária e necessária, e eu passei alguns meses para voltar ao normal. Ainda hoje esse livro me atormenta e assombra — se você já deixou algum trabalho importante inacabado, sabe do que estou falando —, e eu planejo voltar para ele em breve. Dessa vez, irei com um pouco mais de cuidado, mas só sairei dele com o resultado final em mãos, custe o que custar, inclusive minha sanidade.