As pessoas me pedem para escrever sobre o meu processo criativo. Todas as vezes que isso acontece, hesito. O motivo é que eu mesmo já fui muito interessado nos processos criativos alheios, e sei que o que funciona bem para uma pessoa não vai, necessariamente, funcionar para outra. É como eu costumo dizer aos meus alunos, citando Antonio Machado: caminhante, não há caminho, o caminho se faz ao andar. Escritor, não há processo criativo, o processo criativo se faz ao criar. Ou, melhor dizendo, se descobre.
Na prática é isso que acontece: começamos a criar e, à medida em que criamos, descobrimos o que ajuda e o que atrapalha nosso processo criativo, o que funciona ou não. Ou seja, é um processo individual, que pode ou não compartilhar características com os processos de outros criadores. Esteja avisado, portanto, que é muito provável que o que vou descrever aqui não funcione pra você.
Primeiro de tudo, medito. Sim, eu sou um meditador. Eu acordo, busco a luz do sol, sento em posição de lótus, e medito. Também medito à noite, antes de dormir. A meditação é uma das coisas mais poderosas que conheço, ela me ajuda a sossegar o espírito, me ajuda a ter paz; e o melhor de tudo, pensar com clareza e estar presente. Pensar com clareza e estar presente são coisas importantes quando se está criando algo, entende o que quero dizer?
Quando estou em um momento ideal, depois da meditação, como alguma coisa, encho uma xícara de café, vou para o escritório e começo a trabalhar. Se estou no meio de um projeto longo (um livro, por exemplo), escrevo a meta do dia; se estou sem projetos em andamento, escrevo um conto ou pesquiso alguma coisa. Eu nunca estou sem ideias, nunca, e acredito que isso se deve ao fato de sempre ter me permitido ter ideias ao longo da vida. Explico: talvez instintivamente, nunca rejeitei minhas ideias quando elas surgiam na minha mente, pelo contrário, eu as alimentava e as deixava crescer ao máximo. Sempre foi assim. Às vezes eu não as executava, claro, fosse porque não era um bom momento, fosse porque era uma ideia complexa, além das minhas capacidades do momento (“para escrever sobre isso eu precisaria estudar engenharia aerospacial e não tô com saco pra fazer isso agora”), fosse apenas porque não era do meu interesse. Mesmo nesses casos eu só as deixava partir depois de me assegurar que embora não tivessem sido executadas, haviam crescido o suficiente para saberem cuidar de si mesmas.
Não estou dizendo que sou um gênio nem nada parecido com isso, pelo amor de deus, o que estou dizendo é que se você não rejeita suas ideias, sua musa interior (chame do que quiser) se sentirá mais à vontade para continuar aparecendo com novas ideias. Ela sabe que será bem recebida, sabe que não será rejeitada, sabe que pode contar com você. Não sei se você vê algum sentido nisso, mas talvez a musa, como qualquer um de nós, não goste de ir aonde não se sinta bem recebida.
Agora vamos ao processo propriamente dito: eu gosto de trabalhar com metas e prazos, o que eu sei que muitos escritores detestam. No meu caso, the ultimate inspiration is the deadline (eu tenho essa frase de Nolan Bushnell, literalmente, em uma cerâmica na minha mesa). Esse prazo normalmente não é externo, eu apenas decido que preciso terminar um projeto em um determinado tempo, divido o número de palavras que presumo para a obra pelo prazo, estabeleço a meta diária a partir daí, e me ponho a escrever todos os dias. Simples, não? Vou exemplificar:
Se eu presumo que meu first draft terá 100.000,00 palavras e planejo escrevê-lo em 2 meses, divido 100.000,00 por 60 e concluo que precisarei, se quiser alcançar a meta, escrever cerca de 1667 palavras todos os dias durante os próximos 60 dias. Vê? É bem simples. Quanto à presunção da quantidade total de palavras, ela é intuitiva e arbitrária mesmo.
Outra coisa que eu faço é o desapego total da primeira versão. Acredito no Hemingway (“a primeira versão de qualquer texto é sempre uma merda”). Nesse primeiro momento o meu principal objetivo é ter algo sobre o qual trabalhar. Costumo usar com meus alunos uma comparação um tanto esdrúxula, mas que faz todo sentido: se você fosse um escultor e precisasse de argila, a argila já estaria à mão, você só precisaria pegar aquela massa disforme e esculpi-la, de modo a lhe dar alguma forma aceitável. No nosso caso, escritores, a diferença é que primeiro precisamos criar a nossa própria argila, ou seja, o first draft. Uma vez que a argila está na nossa mesa, bom, é só transformá-la no que bem entendermos.
A partir daí tudo o que faço é um trabalho mais racional e objetivo de reescrita. Não há muito de criativo aqui, o foco é outro. Tão me acompanhando? Vou recapitular: acordo, medito, tomo café da manhã, vou para o escritório, escrevo a meta do dia; repito esse ciclo até ter uma primeira versão, momento a partir do qual mudo o foco da quantidade de palavras para a reescrita, que pode, naturalmente, incluir cortes e acréscimos, mudanças inclusive estruturais ou na ordem dos eventos etc.
É um processo simples, certo? Não há nada de exclusivo ou inalcançável aqui. A única parte complicada, ao menos para mim, é algo que ainda não mencionei, mas o farei agora: eu tenho um problema grave de imersão e hiperfoco que costuma me tornar uma companhia desagradável durante o processo de escrita. Isso porque na maioria dos momentos em que você tentar falar comigo eu simplesmente não estarei ali, embora o meu corpo esteja. Talvez soe pretensioso ou idiota, eu sei, mas eu realmente fico num estado esquisito. Por isso certa vez comecei a escrever um livro que quase me enlouqueceu, literalmente, e o processo foi tão agressivo do ponto de vista psíquico que eu simplesmente precisei DESISTIR dele para não acabar internado no hospital psiquiátrico mais próximo. Falarei sobre isso na parte II.