Uma verdade difícil de aceitar
Sobre julgar sua própria obra, fracassos e sucessos literários, coisas assim
Eu afirmo e reafirmo com toda a tranquilidade do mundo: nós, autores, não temos o direito de julgar nossa própria obra.
Nós podemos amá-la, odiá-la, admirá-la, renegá-la, estranhá-la e um monte de et ceteras, mas não podemos julgá-la. Quer dizer, do ponto de vista do ato de julgar em si, até que podemos, óbvio, mas o resultado desse julgamento vale tanto quanto uma promessa vazia. Para abusar da terminologia jurídica, nós não temos competência para julgar nossa própria obra. Está fora da nossa jurisdição.
E eu penso que o raciocínio é bastante lógico: estamos corrompidos pela subjetvidade criadora, “parental”, como preferem alguns. É por um motivo parecido que um juiz não pode julgar o próprio filho. Por isso que no ordenamento jurídico há conceitos como suspeição e impedimento. Por isso que qualquer um de nós veria com desconfiança a absolvição de um filho feita por um de seus genitores.
Bom, eu precisava dizer isso porque essa é uma discussão que sempre volta, e há inúmeros colegas que discordam (três escritores juntos numa pizzaria não conseguiriam chegar a um consenso quanto a uma pizza de 2 sabores), argumentando que essa limitação é apenas com a obra já publicada e que nós, escritores, somos o Todo-Poderoso-do-Original.
Tudo bem, é verdade que podemos nos valer dessa capacidade julgadora subjetiva e concluir, acerca de uma obra na qual trabalhamos durante algum tempo, que ela não é digna de uma publicação. Nesse caso a destruímos para todo o sempre, seja pelo fogo, seja pela tecla delete + esvaziar lixeira, mas a pergunta que eu faço aqui é: quem garante que nosso julgamento foi justo?
Não sei se já consegui me fazer claro o bastante, mas o que costuma acontecer é que enquanto aspiramos uma onipotência absoluta sobre o que produzimos, esquecemos que a recepção e o juízo de valor de uma obra está fora de nossa jurisdição. Cabe aos editores, aos leitores, aos críticos, aos ainda não-nascidos e ao mais poderoso de todos os juízes: o Tempo, que talvez seja uma espécie de Suprema Corte, de onde já não cabe mais recurso.
O tempo enterrará obras que julgar dignas do esquecimento, e imortalizará aquelas que considerar dignas de subir ao Olimpo dos Clássicos Literários. E isso nos leva a outro assunto, claro: fracasso, aspirações literárias, sucesso da obra (ou do autor).
É inevitável fazer uma reflexão aqui: um dos autores mais lidos do planeta Terra (talvez o mais lido) na época de Dostoiévski era um cara chamado Paul de Kock. E você agora deve estar se perguntando “Paul de quem?” Pois é, de Kock. E também deveríamos refletir que Emily Dickinson, William Blake e Franz Kafka poderiam ser definidos como bons exemplos de fracasso literário se levássemos em consideração apenas os resultados que alcançaram em vida. Aliás, o próprio Dostoiévski costumava lamentar, ao tentar julgar inutilmente sua obra, que não havia conseguido explorar todo o seu potencial literário, criativo etc., por escrever “sempre às pressas”.
O caso é que o mundo seria um lugar muito menor se as obras de Kafka tivessem mesmo sido destruídas, como era sua vontade. Seria um lugar menor se Emily Dickinson tivesse julgado sua obra digna da lixeira (e por falar em lixeira, se Thabita King não tivesse resgatado Carrie do lixo e insistido para que seu marido, Stephen, o terminasse, pois era mesmo um texto muito bom e com um baita potencial) e, é claro, se Dostoiévski não tivesse tido tanta pressa.
Toda essa discussão volta à tona em virtude da publicação póstuma de um livro que Gabriel García Marquez considerava péssimo e que a seu ver deveria ser destruído. De minha parte, acho que se ele quisesse vê-lo destruído, obviamente o teria destruído ele mesmo, ou tomado providências para inviabilizar sua publicação (todos nós temos oportunidade de fazer isso com um first draft em algum momento), mas, e esse é o meu ponto, não teria sido uma decisão justa, principalmente em se tratando da obra de um escritor que é quase que unanimemente considerado um dos maiores de todos os tempos. Deixem que os leitores julguem, e que o tempo julgue, porque talvez Gabo esteja errado, pois não? E mesmo que não esteja, bom, tenho certeza que a maioria de nós prefere viver num mundo onde podemos ler mais uma de suas obras, mesmo uma que ele considerasse terrível.