Eu preciso deixar isso claro de uma vez por todas.
Mais uma vez.
Seguinte: eu era criança e já gostava de criar histórias. Era isso que eu fazia quando brincava sozinho: inventava histórias, às vezes interpretando os personagens que eu mesmo criava, imitando suas vozes, imaginando suas ambições, esse tipo de coisa. Não escrevia, pois ainda não entendia que era capaz, mas paradoxalmente eu lia os gibis da Turma da Mônica e criava roteiros na minha cabeça, aventuras que provavelmente jamais seriam aprovadas pela Maurício de Souza Produções, mas das quais eu gostava bastante, algumas tão reais que depois se confundiam na memória: eu havia lido ou imaginado aquela aventura?
Mas não era só de imaginar histórias que eu gostava. Não: eu gostava de consumi-las também. Muito. Se você quisesse ganhar minha atenção, bastava me contar uma história interessante. Foi com uma história interessante que minha mãe me aterrorizou numa de suas tentativas para que eu me alimentasse bem (contando a história de um garoto que morria de fome e depois voltava pedindo comida), foi com uma história interessante que me apaixonei por este ou aquele assunto, e era ouvindo histórias interessantes que eu preferia ficar quando íamos para Alagoa Grande, na Paraíba, e os adultos ficavam contando causos em suas cadeiras de balanço enquanto as outras crianças corriam de lá pra cá. E eu gostava tanto de histórias interessantes, que era a única criança que já conheci que gostava de ouvir um vinil chamado “Do inferno para as mãos de deus”, apenas porque dramatizava o que para o Roberto da época era uma baita história interessante.
Quando fiz amigos, minhas brincadeiras preferidas eram as que envolviam histórias. Lembro que às vezes nos desafiávamos a, por exemplo, “contar uma história sem falar aí” como em “aí ele chegou e disse que não estava mais interessado e aí a esposa dele ficou triste porque estava contando com isso etc.” Quando fiquei um pouco mais velho, fiz amigos que gostavam de brincar com bonecos, e naquelas brincadeiras nós criamos histórias bastante complexas: tínhamos vilões, mocinhos, coadjuvantes, trama, continuidade, todo um worldbuiding que até hoje me soa complexo quando penso que foi elaborado por crianças na faixa dos 10, 11 anos. O meu amigo Benjamin Apolonio, hoje poeta, tá aí de prova.
Quando decidi que seria escritor — o contexto dessa decisão fica para outro texto — , percebi que não havia nada no mundo mais importante do que isso para mim: contar histórias interessantes sobre personagens interessantes. Apesar dessa certeza inabalável, muitas foram as pessoas que tentaram me dissuadir dessa empreitada maluca, e por vários momentos conseguiram plantar a semente da dúvida ou da insegurança, o que me levou a desvios no caminho.
Agora vamos pular a parte em que tentei ter trabalhos normais, tanto no setor público quanto privado, e a parte em que tentei várias faculdades e concluí, de todas, aquela com a qual tinha a menor afinidade apenas porque achava que tinha que concluir alguma coisa.
Pois bem: aceleramos mais um pouco e, uma mudança de estado, um emprego estável no mercado livreiro, um casamento, dois filhos, uma pandemia, uma demissão, a escrita de um livro de 440 páginas, o contrato com uma grande editora e um governo irresponsável depois, cá estou eu escrevendo esse texto. O objetivo: deixar claro, mais uma vez (e dessa vez vou deixar esse texto publicado em algum lugar para recorrer a ele sempre que alguém vier me encher os pacovás), que eu sei exatamente o que quero da vida.
E se fosse dinheiro, teria sido muito mais fácil ter tirado minha OAB.
E se fosse estabilidade, teria sido muito mais fácil passar num concurso público.
E se fosse qualquer outra coisa, teria sido muito mais fácil estar dedicando tempo e energia a essa outra coisa.
Mas não: eu estou dedicando tempo e energia ao que amo e quero fazer, ou seja: contar histórias interessantes. Se o dinheiro vier, que seja como consequência. Se não vier, azar. Estou com 39 anos e acho que a vida é breve demais pra gente ficar feito um burro correndo atrás da cenoura na ponta da vara de pesca. É sério. Quando falo aos meus alunos sobre que tipo de determinação precisa ter um escritor, sempre digo que todo escritor é um mendigo em potencial, e se você decide continuar mesmo sabendo disso, que bom. É desse tipo de determinação que estamos falando. Outro exemplo? Você continuaria escrevendo se ganhasse na Mega da Virada? De minha parte, eu nunca titubeei: não só continuaria como ainda escreveria mais do que o faço hoje, já que não teria que me preocupar com a coisa que hoje mais atrapalha meu processo criativo, ou seja, problemas financeiros.
De qualquer forma, o resumo da ópera é que enquanto a vida me permitir, continuarei escrevendo. E espero que seja, na pior das hipóteses, histórias interessantes.