Meu pão-com-ovo
A breve história de uma obsessão pessoal
Nelson Rodrigues escreveu certa vez que tinha uma verdadeira obsessão por pão com ovo. Essa obsessão, dizia, tinha origem no fato de ele ter sido uma criança pobre que só tinha como levar de lanche para a escola um irrisório pão com manteiga, enquanto colegas abastados levavam sanduíches de pão com ovo. Nos intervalos, o pequeno Nelson observava, tomado por uma inveja abissal, os colegas se empanturrando com seus sanduíches enquanto pedaços de ovo escorriam pelo queixo. “Um dia”, prometia a si mesmo o pequeno Nelson, “eu terei dinheiro suficiente para comer quantos pães com ovos eu quiser!”
O caso é que Nelson cresceu, tornou-se um dos maiores jornalistas do país — e nosso maior dramaturgo, a coisa mais próxima que nós temos de Shakespeare —, e um adulto obcecado por pão com ovo. Ele comia todas as manhãs com o deleite de um náufrago recém-resgatado, mastigando de forma ostensiva, tomado por um prazer semelhante ao da conquista, ao de quem coloca uma bandeira na lua pela primeira vez.
Consigo entender bem o que aconteceu com o Nelson porque também fui uma criança pobre para a qual pão com ovo era um luxo, e também tive colegas na escola com vidas melhores que a minha (muitos tinham vidas piores também, é preciso que se diga). Apesar disso, a verdade é que nunca dei muita bola pra comida — eu fui uma criança magricela que tinha pouca disposição para comer, sabe Deus por que —, mas desenvolvi o mesmo tipo de obsessão depois que descobri que os livros existiam, e nem eu nem minha família tínhamos condições de comprá-los.
Naquela época o que me restava era ler qualquer coisa que me caísse em mãos, aproveitar as circunstâncias, como quando alguém me oferecia um livro emprestado ou, mais tarde, quando fundaram uma biblioteca pública em meu bairro.
Nas idas à capital, quando eventualmente visitava sebos e livrarias, meus olhos passeavam pelos livros e seus respectivos preços com um misto de cobiça e assombro, porque eu já sabia então das possibilidades que havia ali no meio daquelas páginas: mundos, histórias, informações, ideias, provocações. Meu espírito carecia da fome que faltava ao meu corpo.
“Um dia”, eu me dizia finalmente, “terei dinheiro para comprar o livro que eu quiser, e quantos quiser.”
E é claro que um dia eu também cresci. E eu, que sempre dediquei boa parte do meu tempo aos livros, desde que comecei a trabalhar é o que tenho feito com meu dinheiro também: dedico parte dele aos livros com uma irracionalidade animal. São o meu pão com ovo. Faz muitos anos que minha vida tem, de um modo ou de outro, girado em torno deles, e os leio e penso neles de um modo febril, como se pudessem me oferecer A GRANDE RESPOSTA para uma pergunta que eu nem sei se existe. Sim, há livros em quantidade suficiente para centenas de milhares de vidas, e eu viveria todas elas pelo prazer de lê-los; e sim, é óbvio que a vida não é só isso.
Como eu disse, é irracional. Se você não compreende é porque não há o que compreender. Não tentem argumentar contra a irracionalidade, é perda de tempo. É como tentar apagar o fogo da paixão: a ninguém foi dado esse poder além do onipotente Deus-Tempo.
Mas se você sente, ah, se você TAMBÉM sente, bom, então você não precisa de explicações. Você sabe bem do que estou falando.



