Antes de mais nada, quero desejar a todos um feliz Natal! Muito obrigado por terem atravessado esse ano comigo. Que em 2025 possamos continuar juntos, para o que der e vier.
Um enorme abraço em cada um de vocês.
Roberto
MEMENTO MORI
Por Roberto Denser
FAUSTO
Que sou eu, se não posso alcançar, afinal,
A coroa com louros da nossa humanidade,
A que todos almejam com tanta ansiedade?
MEFISTÓFELES
Não és mais, meu senhor, do que és: um mortal!
Perucas podes ter, com louros aos milhões.
Alçar-te com teus pés nos mais altos tacões,
Serás sempre o que és: um pobre ser mortal!
— Johann Wolfgang Von Goethe
SENTADO DIANTE DA JANELA EM SUA CADEIRA de rodas Ortobras dobrável, Guilherme Badock folheava com dedos artríticos e unhas amareladas um velho álbum de fotografias. Ao seu lado, em pé, ostentando um uniforme impecável de enfermeira, Marinalva o observava com alguma impaciência.
“Seu Guilherme, eu perguntei se o senhor vai querer mais uma taça de vinho.”
Ela olhou discretamente para o relógio na parede, um Herweg original modelo carrilhão, conforme ele a explicara mil vezes, com caixa de madeira de lei, caracteres romanos e pêndulo banhado a ouro. Seu patrão era obcecado por aquele relógio e ela desconfiava que aquela caixa assustadora deveria valer alguns meses de seu salário. O pêndulo tiquetaqueava em seu ritmo costumeiro, capaz de enlouquecer uma pessoa de temperamento ansioso, como ela.
“Eu vou precisar sair, como combinado, e queria saber se o senhor vai ficar bem.”
Badock ergueu os olhos rajados de vermelho na direção da enfermeira como se apenas agora se desse conta de sua presença.
“Vou sim, minha filha”, disse com a voz rouca enquanto fechava o álbum com um estalo e o depositava delicadamente no aparador ao seu lado. “Pode me trazer mais uma taça. Vou beber na cama. Estou cansado.”
“Logo mais estarei de volta, seu Guilherme. São só algumas horas.”
Ele pigarreou e tossiu devagar, um pouco engasgado com a própria saliva.
“Eu sei.”
Marinalva o observou com atenção. Apesar de velho, ele não estava tão doente a ponto de não poder ficar algumas horas sozinho. Além do mais, havia sido sugestão dele. Foi ele quem a chamou e disse que não precisaria dela na noite de Natal, que ela fosse cear e confraternizar com sua família, ele a liberaria de bom grado. A princípio relutante, Marinalva aceitou com a condição de que ele a recebesse de volta tão logo a ceia terminasse, o que ele não objetou. Ela voltou a calcular mentalmente que se saísse agora, estaria em casa em vinte minutos, teria tempo para tomar um banho e vestir uma roupa, cear, confraternizar com a família, e voltar pouco depois das duas, quando todos já tivessem ido embora. Seu cálculo foi interrompido pela voz rouca de Badock.
“Me ajude a ir pra cama. Você me traz mais uma taça de vinho e pode ir embora.”
Assim ela fez. Empurrou a cadeira de rodas até perto da cama e o ajudou a se transferir para lá. Embora Badock ainda conseguisse andar dois ou três passos antes de ficar tonto ou apelar para o andador, Marinalva achava prudente manter a cadeira de rodas o mais próximo possível da cama.
“Os próximos remédios que o senhor precisa tomar são só às três da manhã. Antes disso eu já estarei de volta.”
Ela voltou a olhar para o relógio.
“Devo estar de volta assim que a ceia acabar, entre uma e meia e duas horas. Se precisar de alguma cois—”
“Minha filha, eu já estou deitado, já caguei e já mijei tudo o que tinha pra cagar e mijar no dia de hoje e, além disso, já estou de fraldas.”
Marinalva desviou os olhos dos dele.
“Só vou terminar mais uma taça e dormir. Quando acordar tenho certeza que você já estará de volta. Não se preocupe comigo, vá confraternizar com sua família.”
Ele girou o dedo em volta.
“Vê? Família é importante.”
Marinalva respirou fundo, agradeceu mais uma vez e foi pegar a garrafa de Château Lafite Rothschild, um dos poucos vinhos que, segundo ele, valia a pena beber no Natal. Encheu a taça até a metade, mas Badock insistiu para que colocasse mais um pouco, o que ela fez a contragosto.
“O doutor disse que não era pra exagerar.”
Badock não lhe deu ouvidos e ela, motivada por uma condescendência natalina, deixou a garrafa com o resto do vinho na mesa de cabeceira, bem ao alcance de sua mão, caso ele quisesse beber mais um pouco.
“Feliz Natal, minha filha”, disse Badock.
“Feliz Natal, seu Guilherme”, respondeu ela, despedindo-se e caminhando a passos largos em direção ao seu Golzinho branco.
Pouco depois de se ver sozinho, Badock percebeu que não estava com tanto sono quanto pensara a princípio. Olhou para o álbum de fotografias largado no aparador próximo da janela e calculou se seria uma boa ideia ir até lá. Concluiu que não. Depois se amaldiçoou por não ter pedido para Marinalva deixar seu toca-discos ligado com algum vinil da sua coleção tocando, talvez um do Roberto Carlos ou da Jovem Guarda, que ele insistia em continuar ouvindo sempre que se sentia tomado por uma melancólica nostalgia. Acabou se dando por vencido.
Me resta dormir, pensou melancolicamente.
Virou-se para o lado e baixou a luz amarela do abajur ao mínimo, bebeu o resto do vinho de uma só vez e depositou a taça na mesa-de-cabeceira. A seguir, respirou fundo e se acomodou na pilha de travesseiros, que o deixavam um pouco inclinado para diminuir o refluxo gástrico que sentia durante a noite. Alguns minutos depois, suas pálpebras começaram a pesar e ele concluiu que o vinho o faria ter uma excelente noite de sono. Estava quase dormindo quando começou a sentir frio e foi tomado por uma forte sensação de que alguém o observava. A princípio tentou ignorar, mas a sensação era tão forte que ele quase conseguia sentir a respiração de outra pessoa no quarto. Relutante, abriu os olhos e viu horrorizado um homem sentado tranquilamente em sua cadeira de rodas, encarando-o.
“Feliz Natal, Zé”, disse o homem, sem se mover e com uma voz grave e familiar.
Badock sentiu o coração socar o peito com uma força que ele julgava perdida, e quase desmaiou com o susto.
“José Guilherme de Carvalho Fonseca”, disse o homem. “Mais conhecido como Guilherme Badock.”
Badock tentou responder, mas só conseguiu tossir.
O homem afastou a cadeira de rodas com a destreza de um velho cadeirante, girou em torno de si mesmo e deu uma volta no quarto. Parecia estar se divertindo. Em seguida se levantou, pegou a garrafa de vinho, colocou um pouco na taça e disse:
“Beba. É água.”
Badock deu um gole e constatou que era, de fato, água, mas aquilo o deixou menos surpreso do que deveria.
Claro que é água, pensou com o tom de quem reconhece uma referência externa num texto literário. Ele jamais perderia a oportunidade de fazer uma piada.
Apoiou a taça na mesa de cabeceira, pigarreou e disse:
“Eu sei quem é você. Só não entendo por que demorou tanto.”
O homem pegou o álbum no aparador, voltou a sentar na cadeira de rodas e começou a folheá-lo.
“Você era bonitão, Zé”, disse o homem. “Forte, robusto, uma beleza incomum pra época. Se não tivesse sido escritor tenho certeza de que não teria se dado mal como modelo ou ator de cinema.”
Badock não respondeu. O homem continuou a folhear o álbum, detendo-se na foto em preto e branco e meio desbotada de uma jovem mulher sorridente erguendo um bebê no colo como se fosse um troféu.
“Ah, tá explicado de onde veio a sua beleza. Sua mãe era mesmo uma graça.”
O homem o encarou com seriedade e Badock pôde observá-lo com clareza pela primeira vez. Não havia nada de extraordinário nele, exceto por um asseio que parecia contrariar as leis da natureza. Ele passava a impressão de que se Badock lhe jogasse um balde de lama em cima, a lama simplesmente não o atingiria. Afora isso, vestia um terno azul marinho de linho, uma camisa branca sem gravata, e sapatos de couro de jacaré combinando com o cinto. O tipo de homem que causaria uma boa impressão em quase qualquer lugar do planeta.
“E eu, Zé, mudei muito?”, perguntou o homem, percebendo que Badock o analisava.
Badock sentiu os olhos do homem se impondo contra os seus como se os violentasse, e não conseguiu encará-lo. Baixou a cabeça.
“Eu... eu não lembro de como você era.”
“É compreensível, Zé. Faz muito tempo e sua memória já não é mais a mesma. Você está velho.”
Badock assentiu.
“Bem, bem velho”, enfatizou o homem.
“Mas você é diferente do que eu imaginava.”
O homem sorriu.
“E o que você esperava? Um show de pirotecnia? Um careca com a cabeça cheia de pregos? Alguém com a aparência de uma estrela do rock? Eu ficaria ridículo de calça de couro, Zé. Eu vi o tempo nascer e renascer. Sou conservador em minhas preferências.”
O homem voltou a folhear o álbum, agora menos interessado e passando as páginas com rapidez.
“As coisas saíram como você esperava?”, perguntou depois de algum tempo. Parecia entediado.
“Não”, respondeu Badock.
O homem ergueu a cabeça com uma expressão intrigada.
“Como não? Você viveu o seu sonho. Você conseguiu a proeza de ser... como era mesmo o pedido... ser lido e admirado. Por acaso alguma vez te faltou alguma dessas coisas? Em algum momento te deixei sem inspiração?”
O homem ergueu o dedo indicador e o deslizou no ar, apontando para as paredes do quarto.
“Quantos escritores, dentre os inúmeros que você conheceu, teriam conseguido pagar um imóvel desses apenas com a grana da sua literatura? E não foi só isso, Zé. Você teve amantes, inúmeros, de vários gêneros, idades, etnias. Você viajou o mundo, cruzou céus, estradas e oceanos. Conheceu lugares históricos e se deleitou com comidas exóticas; lembra quando tremeu de febre em Kamanjab? Quando mergulhou nas belas águas de Salalah? E de quando você foi esfaqueado numa ruela em Londres, você lembra? Estava frio, você pensou que fosse morrer. A sua melhor lembrança, porém, é de fazer amor sob as estrelas do imponente céu do deserto de Rub' al-Khālī... Lembra? Mas não é nisso que você estará pensando quando fechar os olhos pela última vez, Zé. Não. Quando fechar os olhos pela última vez você estará lembrando de coisas muito mais ordinárias, e muito mais significativas, como naquele dia quando teu pai te ensinou a andar de bicicleta.”
O homem sorriu , levantou-se e voltou a colocar o álbum sobre o aparador.
“É, foi uma vida e tanto. Quando você questiona por que demorei a vir, a verdade é que você soube aproveitar a vida e isso de algum modo me fascinava. Eu ficava me perguntando o que viria a seguir: que próxima grande aventura viveria meu Zé Guilherme”, o homem sorriu com alguma nostalgia. “Mas agora o bar tá fechando e a conta chegou, Zé. Não tem o que fazer.”
Badock sentiu o coração acelerar. Sua mandíbula tremia segurando o choro.
“Antes... antes você pode...”
“Você não errou, Zé. É isso que quer saber, não é? O inferno é individual, não coletivo. Não faria sentido se fosse coletivo, não é mesmo? Por que você e Gêngis Khan iriam para o mesmo lugar? Isso seria ridículo.”
O homem sorriu, talvez imaginando a cena que acabara de sugerir.
“Embora gostem de me acusar do contrário, eu sou a própria definição de justiça.”
Os olhos do homem estavam bem mais acesos agora.
“O que vai acontecer comigo?”
“Isso importa?”
“Sim.”
“Por aqui você vai ser esquecido, Zé. Só isso. Você será apagado. Em poucos anos ninguém mais lembrará de você. Como eu disse, sou justo. O seu pedido foi ser lido e respeitado em vida. Você foi, não foi? Agora vem o pagamento e o apagamento, se me permite ser um pouco criativo. Quanto ao que acontecerá por lá, bom, você trocou uma ilusão por outra e, como eu disse, o inferno é individual. Mas não se preocupe. Eu não sou um idiota sádico e desocupado que vai sentir prazeres inesgotáveis em enfiar um tridente em brasas no seu cu eternidade adentro.”
“Isso significa...”
“Significa o que significa, Zé. A ilusão é a realidade de quem não tem consciência da ilusão. A realidade é ilusão da vez, e você escolheu o Inferno. Agora volte a dormir. O espetáculo acabou. Você merece um suave fechar de cortinas, mas não espere nenhum aplauso.”
Sem conseguir continuar segurando o choro, Badock fechou os olhos e dormiu.
Mais tarde, ao chegar à casa de Seu Guilherme, Marinalva o encontrou deitado no mesmo lugar. Estava morto, mas ainda quente, o que a seu ver indicava que havia acabado de acontecer. A cadeira de rodas estava bem longe da cama, o que indicava que ele provavelmente havia decidido passear pelo quarto durante as horas em que passara ausente. Na taça de vinho sobre a mesa-de-cabeceira, restava um pouco de água, o que também era um indicativo de sua aventura. Sentindo-se culpada, ela ligou para o hospital e para o SAMU, explicando que seu paciente havia passado mal enquanto dormia, e que ela não conseguira socorrê-lo a tempo.
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Que incrível este conto, sentimos a solidão e melancolia do Guilherme e o desfecho é simplesmente genial. Obrigada pelo presente.
Isso aqui foi simplesmente brilhante, mas também um lembrete dos percalços da vida de um escritor. Sei lá, ainda estou processando o texto. Muito bom! Quero ler mais!