Essas pessoas esquisitas que nunca rabiscam seus livros...
Ontem peguei meu exemplar de As Dores do Mundo, do Schopenhauer, e reli as primeiras páginas. Já no primeiro capítulo encontrei anotações sobre minha novela Estrelas Mortas (o narrador é de algum modo um discípulo do pessimista alemão), observações sobre determinada frase ou parágrafo, uma ou outra nota pessoal do tipo “pensar a respeito” ou um simples “risos” ao lado de algum trecho particularmente engraçado. Foi um duplo prazer: a releitura de um filósofo que gosto — e que me provoca, faz rir — e as anotações do leitor que eu era quando li aquele livro pela primeira vez.
Terminei o primeiro capítulo refletindo sobre essas pessoas esquisitas que jamais rabiscam seus livros. Conheço várias: o livro é um item sagrado, que leem com todo o cuidado do mundo, como se algum movimento brusco ou um pouco mais duro pudesse reduzi-lo a pó. Eu fui uma dessas pessoas quando tinha por volta dos 15 anos, mas pouco mais de 20 anos depois eu ando rabiscando até os livros da Cosac, que no Brasil viraram coisa de colecionador.
O que me transformou num rabiscador compulsivo não sei bem, mas talvez tenha sido a consciência de que ars longa, vita brevis; ou então um livro que certa vez me caiu em mãos, datado dos anos 30 e ainda em boas condições, talvez o livro que uma amiga me emprestou um dia e que estava cheio de anotações, e que me causou uma experiência de leitura até então inédita; talvez o conjunto de todas essas coisas.
Quando advoguei em defesa do rabisco em público pela primeira vez (Bar do Péla, Abril de 2006) só faltaram me chamar de nazista: livro não se rabisca, gritavam os colegas de mesa, depois disso o próximo passo é jogá-los na fogueira.
Mas eu dizia: Ei, ninguém aqui vai viver pra sempre, certo? Os homens passarão, os livros passarinho (Abraços, Quintana). De modo que voarão em direção a outros leitores, outros ninhos, e no caso de quem vai deixar herança (ou seja: vai MORRER e deixar os livros pra seja lá quem for), pense no seguinte: quem sobrar vai ter muito de você em suas anotações. E isso é fofo.
Continuarei, portanto, um rabiscador convicto, e seguirei sem entender essas pessoas esquisitas que jamais rabiscam seus livros. São como tardígrados e física quântica: jamais compreenderei por completo.