Alguns escritores começam um diário tão logo iniciam o trabalho de um novo livro. Nele, escrevem sobre como foi o dia, se atingiram ou não suas metas pessoais, quais os principais problemas — e principais questões — que enfrentam ou encaram ao longo da obra. Como é destinado apenas ao próprio autor, sua escrita normalmente é descuidada, leve, sem grandes preocupações estéticas, e conforme o livro vai crescendo e ganhando forma, assim também vai o diário.
O objetivo, creio, é desabafar. Escrever é muito solitário, e muitos de nós não ousaríamos falar com ninguém sobre um trabalho que ainda está em andamento. Sabemos que iniciar um livro boa parte das vezes não significa que iremos concluí-lo. Sabemos que falar gera expectativa, às vezes cobrança ou autocobrança. Sabemos que obtemos resultados melhores quando fazemos mais e falamos menos. Alguns de nós, como eu, levamos bastante a sério aquela máxima que diz escreva de porta fechada, reescreva de porta aberta. Por isso alguns escritores recorrem ao diário: ali eles podem desabafar, escrever impunemente sobre todas as suas ideias, expectativas e inseguranças, falar sobre as alegrias, tristezas e dificuldades do processo. Além de tudo, é terapêutico, e, como na terapia, ninguém fica sabendo a não ser que você resolva contar. Na tradição, alguns se desfazem do diário tão logo terminam o livro; outros, mais comprometidos com o seu legado, o arquivam. E vida que segue, que venha o próximo livro, e o próximo diário de escrita.
Confesso que já tentei fazer algo parecido na época em que tinha o hábito do diário, mas sempre encontrei mais dificuldade para escrever sobre mim mesmo do que para escrever sobre as pessoinhas que só existem na minha cabeça. Não é nenhum bloqueio psíquico, longe disso, é apenas tédio: a vida de um escritor como eu é entediante, já que sou do tipo prosaico e que prefere se aventurar apenas pelo reino do Tudo É Possível, também conhecido como Imaginação ou, melhor dizendo, página em branco.
Quando jovem, talvez tivesse o que relatar sobre mim mesmo: veja, fiz orgias; veja, me insurgi contra poderes estabelecidos; veja, questionei o que não devia ser questionado; veja, virei o mundo do avesso. Hoje, porém, já não é o caso, e quando paro pra buscar algo interessante a meu respeito ou na minha rotina que poderia ser escrito num diário público, o que encontro é um cara lutando para pagar suas contas, escrever o próximo livro, educar dois filhos, manter um casamento — e inevitavelmente concluo que não há nada interessante ali.
Exceto pelo livro, claro.
É, eu preciso partir do pressuposto de que ele é, sim, interessante, do contrário por que diabos eu passaria tanto tempo ali? Por que concluiria o trabalho? Por que o publicaria? Então sim, é interessante o suficiente pra me manter comprometido com tudo o que seu processo implica. Ao mesmo tempo, não posso falar sobre ele; quer dizer, não objetivamente. Não posso dizer, por exemplo, que se chama isso ou aquilo, que fala sobre isso ou aquilo, que determinada cena aconteceu assim, assim, assado. Em termos vagos eu até posso dizer certas coisas, mas isso seria desinteressante e passaria a impressão de que o livro é desinteressante também.
Bom, tudo isso é apenas para expor um pouco algumas questões que me incomodam nesse momento, onde eu gostaria de criar uma coluna semanal aqui na Flor do Labirinto sobre o processo de escrita do novo livro. Mas o que eu escreveria, por Deus?! Não quero virar um mero contador de palavras, mas também não quero falar sobre coisas que ainda não estão completas e sobre as quais só posso falar de forma vaga e muito subjetivamente. Além do mais, como eu sempre digo, toda vez que um escritor fala sobre sua própria obra, ele inevitavelmente a diminui. Eu acredito mesmo nisso.